Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Canto do Inácio

Seg | 31.01.22

Sobre o resultado da esquerda nas eleições

Tiago Inácio

Constitucionalistas divergem sobre eventual suspensão de isolamento devido  à Covid-19 para votar - Sociedade - Correio da Manhã

Bem aquilo aconteceu. Eu comecei a escrever isto no dia 28, não estou a ser pessimista por príncipio nem a celebrar a derrota da esquerda portuguesa. Tudo o que eu queria era uma esquerda forte e capaz, o problema é que a esquerda se encontra neste momento bastante limitada, algo que se refletiu nestes resultados (atenção, não considero o PS de esquerda). Neste texto vou tentar apontar a necessidade que a esquerda tem em reformular-se a si mesma, e em reelaborar uma crítica válida ao capitalismo que permitará futuramente uma análise do atual estado de coisas e construir algum tipo de programa político que possibilite o colapso da sociedade capitalista através dos seus próprios termos. Pretendo defender a tese de que apesar da esquerda portuguesa se situar na frente (e bem) da luta pelos direitos dos trabalhador, pela valorização da saúde e da habitação, pelo direito ao ensino entre outros aspetos dignos de louvor, sendo um programa bastante positivo, não é um movimento que vai para além da sociedade capitalista, mas que de qualquer maneira deve ser valorizado e visto enquanto algo bastante positivo apenas no interior da mesma. No seguinte texto procuro apontar os discursos pela esquerda que não têm em conta esta limitação ou que consideram este mesmo entrave mas que evidentemente falham em ir para além do mesmo.

O primeiro problema que encontro na atual esquerda encontra-se na figura dos "falsos amigos", isto é, os que se prendem a uma narrativa da defesa de um estado social forte onde seja atingido o pleno emprego, os principais setores do país como a saúde e a energia encontram-se como bens públicos, procura-se estabilidade e desenvolvimento económico através da paz e harmonia social. Esta ideia keynesiana de um capitalismo regulado que sirva os trabalhadores parece bastante boa. No entanto este programa político nostálgico do pós-guerra tem de ser analisado de acordo com a sua possibilidade histórica e o modo como o capitalismo está desenvolvido mundialmente na atualidade não permitiria qualquer tipo de experiências deste tipo. O meu outro ponto é que mesmo chegando a um sistema político deste tipo, onde a produção de mercadoria se mantém como fator central na sociedade, onde a vida social ainda é mediada pela forma-valor, onde o constrangimento invisível da auto-valorização do capital ainda permanece intacto, o que irá acontecer é uma mera extensão e universalização do capital enquanto esfera de dominação abstrata, e não a ultrapassagem radical deste mesmo, aquilo a que a esquerda se devia propor.

Outra limitação que vejo na esquerda portuguesa é a constante defesa dos valores instituídos na constituição. Atenção e volto a reiterar tal como na questão referida anteriormente da "social-democracia": a democracia, a liberdade, a justiça e os valores de Abril avançados pelos movimentos que fizeram frente e derrotaram a ditadura fascista são padrões de alta importância para a sociedade portuguesa. No entanto acredito que é necessário pensar para além destes mesmos em prol de um programa político que pretenda alcançar outro tipo de vida social. É necessário avaliar estes príncipios de democracia, pretensa igualdade e liberdade de acordo com as expectativas que se colocaram a si mesmos, isto é, confrontar o movimento pretensamente democrático e igualitário através dos seus próprios termos, perceber as razões internas que levam estes príncipios a não satisfazerem os fins que se propuseram a si mesmos, isto de modo a causar um colapso desta vida social mediada pela forma-valor. Como Marx refere no Capital acerca de Bentham, a liberdade burguesa que possuo é a "liberdade" de vender a minha força de trabalho (para não passar fome) . A defesa acrítica e incondicional destes valores só trará consigo a extensão dos pressupostos da economia política. Perceber que apesar da social-democracia ser um "melhor" modelo económico do que um modelo regido pelo neo-liberalismo, esta mesma não se encontra no exterior do campo da economia política. Parece-me que no "combate" ao discurso neo-liberal, devemos evitar ao máximo participar na jogatana da economia política, tal coisa só arriscaria a naturalização das categorias da economia política. Imediatamente parece que não há discurso mais radical do que a conhecida divisão do 1%/99% ou das propostas para taxar as grandes riquezas ou para uma melhor distribuição do lucro que de facto fazem parte dum programa positivo mas sinto que há bastante mais a fazer numa esquerda política que queira de facto abolir o atual estado de coisas.

Para concluir, preciso de salientar este ponto: eu não estou do lado das alternativas que têm surgido como pretensamente radicais e que se recusam a fazer parte do "sistema". Se percebem a quem me refiro, a propaganda de agitação é bastante limitada e comprometida logo à partida tal como nos restantes devido a uma fraca crítica do capitalismo. Propostas como a "prisão dos ladrões do país" não só estão carregadas de populismo penal, mas por outro lado levantam problemas no que toca a uma crítica válida e imanente ao capitalismo, e não uma crítica moralista que não entende a totalidade envolvente da dominação abstrata e invisível do capital mediado pelo imperativo do crescimento infinito e do constrangimento incessante pela "inovação" proveniente da necessidade da maximização do lucro para se manter à tona. O discurso "anti-corrupção" enquanto programa que pretende meramente purgar sujeitos "imorais" da engrenagem (em vez de procurar o problema em si no sistema) é um sentimento facilmente partilhado com o do programa político do fascismo. Não consigo estender muito mais em relação a este ponto, mas para este tema recomendo este artigo. Reitero, o atual programa político da esquerda é bastante positivo e é o único que defende direitos do trabalhador, direito à habitação, direito à saúde, direitos estudantis entre outros, e é algo que eu pessoalmente sempre irei apoiar. Mas, e tal como procurei defender ao longo deste pequeno texto, é preciso de facto ir para além deste tipo de discurso, é preciso não cair no pessimismo, é necessário sermos ambiciosos. Um programa político adequado que tenha como objetivo uma melhor forma de vida social só poderá surgir com a reelaboração e reformulação de uma crítica marxista ao capitalismo que se afaste de interpretações vulgares de Marx e que não se limite a apresentar uma economia política socialista, mas que se proponha a empregar uma crítica da economia política enquanto tal. Significa assim confrontar o capitalismo nos seus próprios termos, o que levará ao colapso dos seus pressupostos económicos imediados e trará com a sua abolição uma nova forma de organização social. Não se trata de fatalismo profético de todo, mas sim a necessidade de uma crítica imanente à totalidade estruturante do capital.

 

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.